CONTISTAS DO NOVO SÉCULO
por Rinaldo de Fernandes
Em seu conhecido ensaio “O Narrador”, Walter Benjamin, após identificar o camponês sedentário e o marinheiro comerciante como estando na base de todos os tipos de narradores, tece alguns comentários acerca do romance. Este romperia com a tradição de narradores que sabem aconselhar. É um gênero feito por um indivíduo isolado para um outro indivíduo, também isolado; aquece a alma do leitor com a experiência de vida (ou um “destino em peregrinação”) retratada. E mais: chama o leitor para “refletir” sobre essa experiência. Portanto, não mais o aconselha para nada, como o fariam o camponês sedentário e o marinheiro comerciante, narradores com invólucro de sábios.
Julio Cortázar, na sua teorização do conto, chama a atenção para um aspecto importantíssimo do gênero, que o aproximaria do poema – o fato de ele precisar ter “significação”. Ou ser capaz de uma abertura de sentidos. Isto quer dizer que o conto deve ter a capacidade de irradiar alguma coisa para além do argumento literário, para além do acontecimento narrado. Um conto não deve ser lido pelo enredo em si, mas pelo que ele projeta na inteligência e na sensibilidade do leitor. Numa palavra: pelo que há de implícito nele.
A noção de “reflexão” em Benjamin é a mesma de “significação” em Cortázar. Os dois pensam a ficção (o primeiro, o romance; o segundo, o conto) como algo que pode possibilitar, além do prazer estético, uma inquietação no leitor. Que o faz pensar sobre as personagens e/ou situações narradas. Cortázar chega a afirmar, a partir de uma série de autores de sua preferência, que um bom conto é um “resumo implacável de uma certa condição humana” ou mesmo um “símbolo candente de uma ordem social ou histórica”.
A idéia de “significação”, portanto, aponta para a capacidade, em maior ou menor grau, que tem a narrativa literária de nos fazer “refletir” sobre o real. Assim, a literatura, nas pegadas de Benjamin e de Cortázar, é uma forma de conhecimento da realidade.
E é assim que vejo os contos desta coletânea. Como relatos que dão a conhecer facetas do mundo em que vivemos. Situações que dizem muito do homem deste início de século 21.
O conto, sabemos, é múltiplo, apresenta variações. Os autores aqui aderem às várias possibilidades do gênero. Há os contos mais longos (não ultrapassando três/quatro páginas), os mini e os microcontos. Nestes últimos, especialmente, há escritores nesta coletânea com um desempenho formidável. Mas os relatos mais longos também têm força, não deixando de dialogar com a grande tradição do conto brasileiro. No geral, atenuaram-se os experimentalismos, as aventuras da linguagem (típicas do conto brasileiro dos anos 70). A língua falada na rua (e ouvida no rádio e na TV, ou escrita no e-mail) é a que predomina nos relatos aqui reunidos.
“Díptico – Lado um”, de Altamir Tojal, trata de traição – o conto, com diálogos certeiros, delineia no desfecho o desejo do protagonista de, em seus encontros com a amante, ter também o marido desta na cama (ménage).
“A flor do diabo”, de Anderson Fonseca, dialoga, de certa forma, com a tradição das narrativas de terror. O conto, de ritmo forte, fisga o leitor, conduzindo-o a um desfecho no qual o diabo é o juiz e o protagonista o que assinala a sentença. Para o narrador, num passo metalinguístico, o escritor cultiva “demônios”, transportando-os para o papel.
Em “Le bec et les cigarrettes”, de Antônio Dutra, o tédio assola o protagonista, profundamente desencantado. O narrador anota: “De Da Vinci pra cá a mesma marcha já sem mistério, uma anatomia contendo um conjunto de músculos e ossos que em algum momento te levam à aposentadoria ou ao ortopedista”.
Daniel Russas Ribas traz “Tudo é trivial”, conto sobre um relacionamento um tanto forjado, frio, no qual os protagonistas tateiam a melhor forma de permanecerem juntos: “De uma maneira formal, são íntimos. Trocam trivialidades um com outro sem culpa. É bom. Ninguém se quebra”.
“Estradas e um só muro”, de Fellipi, tem um personagem solitário, sombrio, ensimesmado: “Quando sua garganta ressecou o suficiente, bem ao fundo da saliva, acordou ao mundo outra vez, mundo do ele sozinho e no escuro, outra vez”.
Os minicontos de Fernando Fiorese são intensos, impiedosos. Abrem-se, com poucas palavras, para realidades muito além daquela contida no relato. “Por empréstimo”, em que um defunto veste um terno usado, é muito cruel, à la Dalton Trevisan.
Francisco Slade também produz contos curtos, sugestivos. “Subterrâneo” flagra uma situação num metrô. Em poucos passos, é desvendada a alma da protagonista, a sua insegurança diante da inexorabilidade do tempo.
Geraldo Lima escreve microcontos primorosos, como este: “Já estava deitado quando ela chegou, tarde, esbarrando nos móveis e tateando no escuro em busca do banheiro”. Tudo aí está dito – e numa única frase.
Leandro Jardim, em “Um fim dos fins”, traz um protagonista angustiado, com um diagnóstico terminal. Conto tenebroso e de desfecho surpreendente.
Em “De quando vivemos em guerra”, de Leonardo Villa-Forte, um exército descumpre as ordens de um general. A narrativa discute a vulnerabilidade do poder.
Márcia Barbieri é uma contista implacável. Opta pelo bizarro, pelo grotesco. “Mosca morta” e “Kamila”, mesclando Eros e Tânatos, se sedimentam num erotismo cru.
De conteúdo fortemente erótico também é “A Aula”, de Mariel Reis, conto bem tramado. Uma professora, com os devidos disfarces, tem um orgasmo em plena sala de aula.
“O menino e o lobo”, de Nilto Maciel, tem uma carga poética muito forte. São criadas situações especulares para os protagonistas à beira de um lago. Belo conto!
A prosa apurada, admirável, de Pedro Salgueiro se faz presente em “Fronteira” e “Mecanismo”. O primeiro, de um absurdo kafkiano, traz um protagonista que vigia ostensivamente o seu inimigo. O segundo, emblema do patriarcalismo, de suas deformações, relata os ritos de uma família: “Papai no seu lugar por direito; mamãe na posição mais cômoda para servi-lo”.
“Fosso, fossas”, de Ronaldo Cagiano, atrai, entre outras coisas, pelas metáforas bem elaboradas, embutidas na narrativa: “A alma também é um terreno marcado pelos anos de hiato e sofrimento”; “o vazio continua fazendo as honras da casa”. Conto de atmosfera asfixiante, sobre a degradação de um relacionamento.
“A chuva dilui e mistura as cores no mapa”, de Tony Monti, tem intensidade poética (já a partir do título). Trata da busca amorosa.
“Donzela”, de Victor Paes, aciona fontes inconscientes. É narrado na forma de um sonho, de um quase pesadelo, atribulando o leitor.
Finalmente, o impiedoso “Lúcifer”, de Whisner Fraga. Conto muito bem armado, sobre um grupo de estudantes que parte para eliminar um cachorro – com frases iniciando sem maiúsculas (o que gera um ritmo intempestivo, imprevisto, aparentando agressividade; a mesma agressividade que, no fim, assalta os protagonistas), tem suspense e prende a atenção do leitor. Ótima narrativa.
Os organizadores conseguiram reunir neste volume um conjunto expressivo de relatos que, sem dúvida, são representativos da narrativa curta que se faz hoje no Brasil.
Boa leitura!