05 agosto 2010

ainda vivo

Resenha de "O óbvio dos sábios", por Paula Cajaty, publicada em seu site, www.paulacajaty.com


Victor Paes pauta sua poesia pelo teatro. 'O óbvio dos sábios', seu primeiro livro de poesia, publicado em 2007, é montado sobre o tablado numa espécie de formato 'stand-up poetry', o que por si só já é um estímulo desafiador.

Claro que esse óbvio de sábios pede para ser decifrado pelos não-sábios que os leem. Esta é apenas a porta de entrada, a chamada inicial para o duelo (ou dueto) que vai se montar dentro e fora do livro. Como Fernando Bonassi pede, na 'Introdução ao óbvio', eu começo abrindo o que tenho nas mãos.

Eu abro. Estruturado em dois tempos, o livro em seu primeiro ato (ou Tempo) vem formado de duelos que Victor e seu leitor vão atravessando, um a um, até que se chegue a um tempo de paz, ou seja, um tempo sem duelos, o Tempo 2.

Várias de minhas perguntas ficaram sem resposta. Como toda mulher, a princípio fiquei bastante irritada por não descobrir 'o que o autor está pensando'. Seria possível que talvez não existisse apenas uma resposta, e que eu tivesse de procurá-las em mim mesma? Seria possível que talvez não houvesse resposta alguma, já que se eu a desvendasse, isso faria de mim uma sábia? Assertivas provavelmente inválidas. Perdi para a esfinge e agora receio ser devorada. Sinto uma vontade infinita de chamar Fernando, ou até Victor, aflita para que eles me expliquem 'a complexidade do que é tão simples.' e que me fugiu, desestruturando um mundo de ideias e conceitos simples e óbvios.

No entanto, algumas janelas se abriram, e talvez só isso já tenha valido minha travessia. Apesar de não decifrar o livro como um todo, reparo sentidos no texto, sim, e eles aparecem como lampejos entre uma ou outra proposição desnorteadora. Entre fragmentos que despistam, eis que a poesia surge, confundindo os olhos do leitor.

Ora Victor tece uma colcha de patchwork, ora exibe aforismos enigmáticos e contundentes como na cena que estrutura e revela o ofício de ator:

'falar por línguas alheias
e chorar de cansaço ao fim do dia'


ou em sua visão de uma tarde de junho anoitecendo:

'1
a tarde
de seus muitos sóis
atravessa o parque
toma um balanço
e anoitece...
2
junho profundo
1
a cada piscar do vaga-lume
um pingo de sombra'


e depois num duelo no telhado:

'2
reformar a casa é abri-la
pra tentar descobrir outra dentro
1
não eram os discos de seu vinil
basta lembrar:
antigamente
a vida chiava'
(...)
'1
rumor nas prateleiras:
a porta está aberta'


Anderson Fonseca, autor da primeira resenha do livro e de entrevista com o autor, ambas publicadas na revista Cronópios, diz acreditar que 'o livro inteiro é apenas um único poema'. Na verdade, assim como a vida pode ser vista como una, apesar de didaticamente dividida em dias, meses, anos e fases, ou o teatro pode ser visto como único, ainda que dividido em capítulos e cenas, também os livros são concebidos numa proposição una: hipótese e conclusão.

Concordo com Anderson sobre a provável unidade de 'O óbvio...'. Contudo, não senti nessa unidade a simples transformação interna do poeta, mas sua verdadeira peregrinação, de tempo e vida e consciência, numa espécie de jornada montada por momentos de lucidez, externa e interna:

'1
branco amarelo
2
quarar a grama de preguiça:
1
branco indelével
2
corar o ar de segredos:
1
branco inevitável
2
questão de espalhar mármores
1
branco
2
branco
(...)
2
catar conchas
é retocar o mar...'


Na verdade, a graça de 'O óbvio...' é justamente desfolhar sua desobviedade, já que não vivemos mais nos tempos dos sábios. A delícia do livro está em re-descobrir que 'a mão espalmada não pára o tempo', que 'a cigarra revela o som do sol', que 'todo céu, por mais azul, tem nuvens dentro' e que certamente, no hemisfério sul, todo junho é profundo.

Depois de ler Victor, fecho o livro e respiro fundo. Não o decifrei, mas não respiro da mesma forma que antes.

Agora, eu aprendi a chamar o vento.

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