22 dezembro 2010

meu texto publicado na revista Polichinello 12

TRÊS DIÁLOGOS SIMULTÂNEOS

Espaço 1

Entre os varais e o muro oeste, um rumor mal... pensamento ainda... “desde cedo andar aberto esse bar...”

Tito – Coquetel de vazas líquidas, de vida e morte, um olho de bode e sangue de cobra toda! De beber, de molhar a nota dos remédios no balcão!
Homem do bar – Duas de dois pra pagar...
Tito – Uma de três, se eu fiz existir...
Homem do bar – Isso é pouco, pra quem já prometeu asa de morcego pra anjo.
Tito – Então vamos saindo, que a ventura está no intento e alguma rua está em festa... sabe Deus se algum compadre acordado.
Homem do bar – Um presente, então, se você levar Rosália. Ela já pende sobre meu picles húngaro.
Tito – Que sumo presente vale Rosália, uma flor de suas cebolas?
Homem do bar – Vale hoje eu não saber ontem aonde você a levou.
Tito – Topo hoje e topo amanhã...

“Couves! Quanto mais cedo abre, mais tempo fica aberto...”


Espaço 2

Laura – Maria Clara hoje entendeu, graças, a tal bicicleta. Essa garota, como sempre, não deixa ninguém ajudar. Ela é isso, coitado do tio... nem abraço. Coitado até do pai. A avó nunca teve a ariranha no colo. Ninguém. E agora uns vêm dizer para eu aceitar a explicação dela, que “não gosta de gente morta”. Recusar é um dom... tem gente que não honra seus dons...
Laurinda – Ariranha... E você é morta, quando?
Laura – Pois a garota está com a certeza do mundo. Diz que nossa pele cheira um pouco e que fazemos barulho de tábua corrida. Que os brinquedos que damos, até os novos, já dão a impressão de faltarem peças.
Laurinda – Ouviu das bandeirolas?
Laura – Quando?
Laurinda – Que na festa junina prefere olhar pra lá o céu, que distrai da gente segurando escadas e tirando leite de coco. Apesar de tudo tão bonito que ela até diz “bonito”. “O diabo está no olhar reto”... ela é que diz.
Laura – Até parei com a veneta de ser mais mãe, vendo. Essa garota tem mãe igual eu sou, que não lasca... mas devia. Gente viva não se chama de morto.
Laurinda – Daqui a anos, ela entenda...
Laura – Entende não.

Meio minuto de silêncio.

Laura – Daqui a anos, a cada um de nós que morre, cada vez menos ela entenda...

Mais um minuto de silêncio.


Espaço 3

Viana, acordado. Um mosquito morto na sobrancelha e a voz cortada de legumes.

Ofélia (por trás da parede direita) – Aí do lado, quem abre a porta é sempre o marido.

Voz na tevê – Carregar cem quilômetros de milhos, estuprar, reproduzir, vingar todos os irmãos...

Luísa (por trás da parede esquerda) – Um grito! A que nenhuma dália prevaleça...

Voz na tevê – Oh, sarça de alabastros!
Voz na tevê – Não há milhos, senhor! Só rosanas...

O céu escurece e entram as moscas, até os ladrilhos.

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