19 julho 2009

meu conto publicado na Polichinello #10

Z

Devidamente castigado o filho, a sala ficava vazia ao ponto dele mesmo ficar nela. Isso tão raro quanto ele realmente trancar portas. Media mais uma vez esse “devidamente”, até desviar sua atenção o álbum de figurinhas do filho sobre a mesa de centro. O tal álbum, sozinho sobre a mesa retangular da sala retangular. O tal álbum, retângulo de retângulos, mais uma vez fazendo sentido naquela geometria. Sabia que aquele sentido era do filho, então abriu o álbum, pela primeira vez, em busca de algo que o solucionasse. O melhor que achou foram os espaços sem figurinhas.
Havia tido cinco álbuns quando criança, um de bichos, um de calhambeques e três de selos. Gostava tanto mais dos selos, que até hoje os defende dizendo os bichos como objetos até para os selos. Calhambeques eram pura ficção.
Na adolescência, pornografia em quadrinhos. Na faculdade, arquitetura. Hoje, fotos de janelas. Fotos digitais, sem álbum: álbuns eram já cismas mais com o espaço que com o tempo.
E então mais: o tal álbum sobre a mesa, agora ao lado de um copo. Mas entre copo e álbum não podia haver nada, nenhuma geometria ou distração, pois o copo estava ali no mínimo duas vezes menos que o álbum.
Súbito, não esperou mais e o abriu pela quarta ou quinta vez. Descobriu que só havia um espaço sem figurinha. Desconsiderou essa distração, e isso adiantava. E ainda mais grave era o filho já ter dito algo sobre já ter tido nas mãos essa última figurinha: algo sobre um ser mitológico que possuía um olho a mais no rosto. Desconsiderou também isso. E também adiantava.
Abriu papéis e canetas, tentando trabalhar. Abriu as janelas. Do outro lado da rua, dois homens montavam um novo outdoor, ainda pela metade, a imagem de um rosto já pela metade. Para não esperar a outra, foi o suficiente: decidiu ir ao filho, levando-lhe biscoitos. O que mais queria dele? O quanto de x e o quanto de y? As paredes de pôsteres. A vista clara de cálculos. Muitas coisas fazendo sentido para o muito espaço que ocupavam. Um dia se reuniriam ali dentro para emassar as paredes e antes disso discutiriam, se valendo dos ecos, e lixariam até o último rasgo de papel ainda na parede, para que um dia não lhes viesse à memória, e a náusea de não ter mais o que fazer. Biscoitos, e se perguntaram pela última figurinha.
A vista turva: sentado na sala, uma ardência bruta, como se algo lhe talhasse a vista.
Já havia sentido quase isso quando se perdeu dos pais no mercado. De repente sozinho, algo lhe exigia o corpo: após muito chorar e andar, que tomasse o redor para si, aquele redor que se insinuava, com novas cores, novas alturas e texturas das coisas. Até que a mãe apareceu, cobrindo todo o seu ângulo de visão, e aí sabia que tudo devia ter se tornado novamente menor que ela.
Começou a andar, tropeçando pelos cômodos, e voltou a si: a mão no rosto sugeriu algo de absurdo, talvez no rosto, talvez na mão.
Pouco não pôde desconsiderar na vida, como, por exemplo, o nascimento do filho, ao qual assistiu por trás de uma filmadora. Os amigos insistiram, mas o fato é que naquela gravação as vozes ficaram afastadas das imagens, às vezes atrasadas, às vezes adiantadas, e ele culpou seu olho triste, de sua “eletricidade inconstante” (um diagnóstico meticuloso, que os amigos insistiam em ver). Fato para ele era o significado do filho ter chorado antes de nascer, e a náusea de não ter mais o que fazer.
E a mulher, que não cabia em seu olho.
Começou a procurar algo, tropeçando pelos cômodos, e voltou a si: a mão no rosto sugeriu um absurdo: dois olhos no rosto, um ao lado do outro. E ardiam juntos, e isso acabaria não sendo desconsiderado. Pois havia uma discordância entre esses dois olhos: agora parecia que alguns objetos que olhasse se recolhiam, e outros não, em uma espécie de hierarquia entre formas e linhas. Movido por essa tontura, saiu para a rua.
Corria, apesar das pernas parecerem várias, às vezes se transpassando, às vezes se embolando. Decidiu parar. Em uma esquina, os carros, inclusive os estacionados, pareciam composições de um trem, único e ao mesmo tempo maleável, desdobrando-se em um susto de pavorosas direções. E cada pessoa dentro de cada um tinha em volta de si um carro que a cada segundo era outro e diversos carros, que infinitamente se iam revezando e se dobrando para dentro. Uma pomba morta em um meio-fio parecia estar morrendo ainda, a cada segundo morrendo de novo a morte de cada ancestral sua, uma de cada vez... e ele parado, respirando ao máximo, para o máximo de atenção, nas pernas, cintura e ombros, e os carros, e as pessoas e as pombas... e olhava ao máximo, apesar da ardência, para realmente o máximo de olhar, para o ponto em que isso tudo poderia acabar, e as pessoas e as pombas... e respirava ao máximo e as pombas, e começou a contá-las, e mil, e quinhentas e vinte e duas, e cento e doze, e, assim, vinte e cinco minutos... e cada vez menos pombas, e doze, e cinco, até apenas uma, aquela única, uma, ali. Apenas uma pomba e ele ali parado. E parou a mão em frente aos olhos, como se fosse coçá-los, mas não havia coceira que justificasse o gesto.
E mais dez minutos e ele ali parado, com dois dedos diante dos dois olhos e nenhum outro gesto.
De repente, após um longo suspiro, pôs as mãos nos bolsos. E teve a impressão de que havia se esquecido de algo. Mas era apenas impressão. Tentou lembrar o que faria hoje na rua. Alguns passos e a merda de um carro parado na calçada, merda para quem estaciona! Ao se desviar, ficou de frente para uma janela com uma planta. E achou uma pena que não estivesse ali com sua câmera. Então se lembrou de uma planta de que havia cuidado, aos sete anos seus e oitenta dela, que os pais haviam deixado ao sair para uma viagem. Contavam, para sua responsabilidade, que a avó jurava que aquela planta, bendita, tinha folhas e anti-folhas que podiam, em uma chuva, estar em chuvas diferentes. Para ele, apesar de seus cuidados, a planta estava morrendo, talvez contra ele mesmo, contra sua responsabilidade. Tantas responsabilidades e ele ali agora, parado em uma calçada, sem nenhum argumento que não fosse tentar lembrar o que havia acontecido com aquela planta...
Sentado na sala, abriu mais uma vez o álbum, de onde caiu uma figurinha, a última, uma holografia de um ciclope, com seu olho vermelho. Teve a impressão de já tê-la visto antes. Seus olhos ardiam um pouco, talvez pela mudança do tempo. Contra o ímpeto de rasgar o álbum, jogou-o sobre a mesa de centro, pensando que talvez o filho pudesse estar vendo esse seu gesto.

Nenhum comentário: