04 janeiro 2010

sobre Neruda

trecho do conto "Carnê de Baile", de Roberto Bolaño
(tradução de Eduardo Brandão)


59. Perguntas para antes de dormir. Por que Neruda não gostava de Kafka? Por que Neruda não gostava de Rilke? Por que Neruda não gostava de De Rokha? 60. Gostava de Barbusse? Tudo faz pensar que sim. E de Cholokhov. E de Alberti. E de Octavio Paz. Estranha companhia para viajar pelo purgatório. 61. Mas também gostava de Éluard, que escrevia poemas de amor. 62. Se Neruda tivesse sido cocainômano, heroinômano, se houvesse sido morto por um estilhaço na Madri sitiada de 36, se houvesse sido amante de Lorca e se tivesse se suicidado depois da morte deste, outra seria a história. Se Neruda fosse o desconhecido que no fundo de fato é! 63. No porão do que chamamos "Obra de Neruda" espreita Ugolino, disposto a devorar seus filhos? 64. Sem nenhum remorso! Inocentemente! Só porque tem fome e nenhum desejo de morrer! 65. Não teve filhos, mas o povo gostava dele. 66. Como à Cruz, devemos voltar a Neruda com os joelhos ensanguentados, os pulmões perfurados, os olhos cheios de lágrimas? 67. Quando nossos nomes não significarem mais nada, seu nome continuará brilhando, continuará pairando sobre uma literatura imaginária chamada literatura chilena. 68. Todos os poetas, então, viverão em comunidades artísticas chamadas cárceres ou manicômios. 69. Nossa casa imaginária, nossa casa comum.

Um comentário:

Edson Amaro disse...

Neruda e Gabriel García Márquez são os maiores nomes da literatura latno-americana pois o poeta, com seu "Canto Geral" e o romancista com "Cem Anos de Solidão", sintetizaram a História e a alma da América Latina.
É doloroso pensar que Neruda não morreu de câncer, mas de Chile, como já disse alguém, vendo a democracia desmoronar sendo chutada pelos coturnos de Pinochet, mas a esperança e a libido que transbordam de suas páginas não nos permitem ser melancólicos ao lê-las.

Edson Amaro